O espetáculo mágico da fé: Legitimação da autoridade religiosa na contemporaneidade

El espectáculo mágico de la fe: Legitimación de la autoridad religiosa en la contemporaneidad

The magic show of faith: Legitimation of religious authority in contemporaneity

Recepción: 17 de enero de 2023 / Aceptación: 28 de febrero de 2023

 

Fernando da Silva Reis1

Bruna Suruagy do Amaral Dantas2

 

DOI: https://doi.org/10.54255/lim.vol12.num23.713

Resumo

No presente manuscrito, analisou-se a utilização do espetáculo e da magia em uma igreja evangélica brasileira como estratégia para resgatar e consolidar a autoridade da instituição e do líder religioso. A metodologia adotada para a coleta de dados consistiu na realização de visitas periódicas aos cultos, na observação participante dos rituais e práticas institucionais, na adoção de um roteiro predefinido para obtenção das informações, na produção posterior de diários de campo e na sistematização do material coletado. A análise possibilitou identificar cenas, símbolos e atos padronizados, que se repetem de modo performático e caricato em todos os espetáculos religiosos. Foram observadas a incorporação cênica das características do pentecostalismo, a utilização de cenários e figurinos preestabelecidos e a apropriação de simbologias judaicas e do panteão das religiões afro-brasileiras. Conclui-se que o uso sincrético de produtos mágicos, lançados no mercado competitivo da fé, favorece a espetacularização da magia e a exacerbação do êxtase religioso, legitimando, assim, a autoridade da igreja em sua mediação espiritual e moral.

Palavras-chave: psicologia social, igreja evangélica, magia, espetáculo, autoridade

 

Resumen

En el manuscrito, se ha analizado el uso del espectáculo y la magia en una iglesia evangélica brasileña como estrategia para rescatar y consolidar la autoridad de la institución y del líder religioso. Los metodología adoptada para la recolección de datos consistió en visitas peródicas a los cultos, observación participante de rituales y prácticas institucionales, la adopción de un guión predefinido para la obtención de las informaciones, la posterior elaboración de diários de campo y la sistematización del material recolectado. El análisis permitió identificar escenas, símbolos y actos estandarizados, que se repiten de forma performativa y caricaturizada en todos los espetáculos religiosos. Se han observado la incorporación escénica de características del pentecostalismo, el uso de decorados y vestuarios preestabelecidos y la apropiación de símbolos judíos y del panteón de las religiones afrobrasileñas. Se concluye que el uso sincrético de productos mágicos, lanzados al competitivo mercado de la fe, favorece la espectacularización de la magia y la exacerbación del éxtasis religioso, legitimando así la autoridad de la iglesia en su mediación espiritual y moral.

Palabras clave: psicología social, iglesia evangélica, magia, espectáculo, autoridad

 

Abstract

In this script, the use of spectacle and magic in a Brazilian evangelical church as a strategy to redeem and consolidate the authority of the institution and the religious leader has been analyzed. The methodology adopted for collecting data consisted of periodic visits to the cults, the participant observation of rituals and institutional practices, the adoption of a predefined guideline for obtaining the information, the subsequent production of field diaries and the systematization of the material collected. The analysis made it possible to identify standardized scenes, symbols and acts, which recur in a performative and grotesque manner in all religious spectacles. The scenic incorporation of the features of Pentecostalism, the use of predefined settings and costumes and the appropriation of Jewish symbologies and of the pantheon of Afro-Brazilian religions have been observed. It has been concluded that the syncretic use of magical products, launched on the competitive market of faith, promotes the spectacularization of magic and the exacerbation of religious ecstasy, thus legitimizing the authority of the church in its spiritual and moral mediation.

Keywords: social psychology, evangelical church, magic, spectacle, authority.

 

Introdução

O pentecostalismo brasileiro é multifacetado, dinâmico, fragmentado e múltiplo. Desde sua gênese, tem se modificado substancialmente; no entanto, preserva sua estrutura teológica e litúrgica, resistindo a mudanças nos fundamentos da fé. Suas transformações deram origem a uma tipologia criada por Freston (1994), que se caracteriza pela existência de três ondas. Denominada de pentecostalismo clássico, as igrejas da primeira onda instalaram-se no Brasil no início do século passado graças à ação de missionários estrangeiros, que preconizavam a disciplina espiritual, a perfeição moral, o isolamento institucional, a rejeição ao mundo secular e a conversão individual. Defendiam o reavivamento espiritual por meio do batismo com o Espírito Santo e a restauração de dons divinos como línguas estranhas (glossolalia), cura física e psicológica, operação de milagres e visões proféticas. Salientavam a importância das ações missionárias e evangelísticas, da iminente volta de Cristo, da escatologia e do milenarismo (Souza & Magalhães, 2002).

Seus líderes e membros possuíam uma forma idiossincrática de se vestir e se comportar, com o propósito de alcançar a almejada santificação e, assim, diferenciar-se dos “não crentes”, o que contribuía com a construção e disseminação de estereótipos sociais. Além do êxtase emocional, as igrejas precursoras do pentecostalismo clássico adotavam a literalidade da hermenêutica bíblica e anunciavam a mensagem da cruz, segundo a qual a ressurreição de Cristo é a garantia da salvação da alma humana no mundo pós-morte. Este novo movimento popularizou-se entre os indivíduos desprovidos de renda, socialmente desprezados, ignorados pelo poder público e lançados à própria sorte. Ao serem integrados às igrejas pentecostais, suas vidas ganham sentido, suas mazelas são espiritualmente justificadas, sua existência adquire algum nível de visibilidade e dignidade, a sensação de pertencimento lhes alcança e a esperança perdida é depositada na vida eterna (Brunner, 2004).

Já a segunda onda, conhecida como deuteropentecostalismo, apareceu no Brasil nos anos 1950 e diferenciava-se por ser menos sectária, pelo evangelismo de massa e itinerante e pela ênfase na cura divina –sua mais poderosa estratégia de proselitismo religioso– incorporando as demais características da primeira onda. Passou-se a utilizar os meios de comunicação de massa, sobretudo canais de rádio, e a realizar megaeventos de evangelização em praças públicas, estádios, teatros e ao ar livre. Eram erguidas tendas de lonas nas grandes cidades para pregar a “Palavra de Deus”. Neste período, as primeiras igrejas fundadas por líderes brasileiros estabeleceram-se em São Paulo (Mariano, 2014). A despeito da maleabilidade das agremiações pentecostais, sua doutrina manteve-se consolidada, sem alteração substancial (Souza, 1969).

No caso da terceira onda, chamada de neopentecostalismo, as primeiras igrejas, que surgiram na década de 1970, caracterizavam-se pelo rompimento com práticas tradicionais de ascetismo e sectarismo que promoviam a santidade; pela flexibilização dos usos e costumes; pelos rituais de exorcismo; pela valorização da guerra espiritual e responsabilização de satanás por todos os males terrenos; e pela pregação da Teologia da Prosperidade segundo a qual os filhos de Deus estão predestinados a serem prósperos, felizes, bem-sucedidos e realizados aqui e agora, no mundo terreno, não apenas no mundo por vir. Incorporou-se ao universo religioso o uso das tecnologias de comunicação e das plataformas digitais, e promoveu-se a comercialização de objetos ungidos e serviços milagrosos. Diferente da segunda onda, o neopentecostalismo surgiu e se expandiu no Rio de Janeiro pela ação de indivíduos de classe econômica e nível cultural mais elevados em comparação com os líderes de ondas anteriores. Enquanto as duas primeiras ondas negavam o mundo, a terceira o afirmava (Mariano, 2014).

Todavia, como propõe Martínez (2012), o neopentecostalismo é uma categoria analítica, de natureza genérica, cuja utilização pode gerar imprecisões, inadequações e generalizações indevidas, negando as particularidades de fenômenos religiosos regionais, geográficos e temporais e, desse modo, ocultando a complexidade e a multiplicidade dos grupos evangélicos. Moraes (2010) argumenta que o termo “neopentecostalismo” possui validade provisória, historicamente delimitada, não sendo adequado usá-lo de forma absoluta e universal, dado que os movimentos pentecostais são mutáveis, se reinventam e enfrentam contínuas rupturas.

Nos últimos anos, como evidência da plasticidade dos segmentos evangélicos, é possível destacar o surgimento de novas igrejas na realidade brasileira que se autodenominam “apostólicas”. Estas instituições, embora possuam características similares às três ondas do pentecostalismo, apresentam traços que as distinguem das demais denominações: o líder da igreja é denominado “apóstolo” e corresponde à autoridade máxima da hierarquia eclesiástica; são adotadas nas cerimônias litúrgicas práticas judaicas e veterotestamentárias (relativas ao velho testamento); são utilizados símbolos e objetos judaicos dentro da igreja; são celebradas festas judaicas; defende-se a cobertura espiritual (a submissão do fiel à autoridade do apóstolo que se reverterá em bênçãos e proteções divinas); segue-se uma nova visão escatológica, pois crê-se que a restauração do ofício apostólico é essencial para reparar a igreja e os cristãos, preparando-os para a parousia –a segunda volta de Cristo (Lopes, 2014a; Lopes, 2014b).

As inovações teológicas seguem ocorrendo de acordo com as regras da economia de mercado em um mundo cada vez mais secularizado. Em decorrência do processo de secularização que desencadeou a perda gradativa da autoridade religiosa e a relativização dos dogmas teológicos, considerados até então inquestionáveis e imutáveis, as igrejas evangélicas começaram a rever seus códigos, símbolos e práticas com vistas a obter maior aceitação na sociedade secularizada, atingindo, assim, o indivíduo contemporâneo e conquistando novos adeptos (Berger, 1985). Para assegurar o crescimento e a expansão das instituições (neo)pentecostais, buscou-se não só a permanência daqueles que já estavam inseridos, mas também o ingresso de novos indivíduos em suas agremiações, mesmo que, para isso, fosse necessário renunciar às posições sectárias e às práticas ascéticas (Mariano, 2014). A secularização ocasionou o fim das religiões herdadas, das lealdades tradicionais e dos sistemas de crença convencionais, uma vez que o passado perdeu sua força e, por conseguinte, dissolveu-se a tradição (Arendt, 2011).

Entretanto, a secularização não corresponde ao declínio do sagrado nem ao desaparecimento das confissões religiosas, mas à emergência de expressões religiosas não-tradicionais, ao surgimento de formas plurais de transcendência, à privatização da fé, ao fim do monopólio religioso e à garantia de liberdade de escolha dos variados produtos simbólicos. Trata-se, portanto, de uma gradual perda da autoridade religiosa em um contexto social globalizado, no qual coexistem múltiplas efervescências e desencantamentos simultâneos. As constantes novidades religiosas resultam da capacidade da sociedade contemporânea –secular, dessacralizada e desencantada– de reestruturar e recompor suas crenças, produzindo novas demandas religiosas e lançando no mercado da fé novos artefatos sagrados (Mallimaci, 2008).

Na modernidade secularizada, a tradição é reincorporada em novos contextos, possibilitando sua permanência, mantendo sua importância, dando sentido ao mundo e criando sentimento de pertença. O declínio da autoridade da tradição não significa sua morte, mas a mudança em sua natureza e no papel que desempenha na sociedade e nos indivíduos (Thompson, 2008). Portanto, a nova maneira de viver o religioso consiste em “crer sem pertencer” (Mallimaci, 2008, p. 125), o que caracteriza o enfraquecimento do poder da tradição, o desenraizamento dos indivíduos, a desterritorialização da fé e a perda da autoridade eclesiástica e institucional.

Não obstante a secularização e a progressiva racionalização da sociedade, observa-se um significativo crescimento das religiões mágicas no mundo ocidental (Mariano, 1996) enquanto as religiões tradicionais se enfraquecem (Mallimaci, 2008). Em decorrência do enfraquecimento e da fragmentação da autoridade religiosa, desenvolveram-se novos meios para tentar resgatá-la. No neopentecostalismo, há grande ênfase na crença mágica e na utilização da magia em seu meio litúrgico. Nos espaços neopentecostais, prevalece o pensamento de que existem figuras carismáticas, indivíduos reconhecidos por alguma qualidade extraordinária que ultrapassa as qualidades humanas, ganhando status sobrenatural, divino e/ou mágico (Proença, 2011). O carisma torna essas personagens capazes de manipular forças sobrenaturais, ocultas e/ou divinas, por meio de rituais ou conjuros, para atender demandas específicas, como curar, defender, atacar ou predizer o futuro (Pierucci, 2001; Proença, 2011; Stark e Bainbridge, 2008). Os que, eventualmente, procuram os magos e feiticeiros para a realização de seus desejos são conhecidos como clientes, não possuindo, “constância, nem regularidade, nem muito menos fidelidade” (Pierucci, 2001, p. 27).

Para a satisfação de seus clientes, os magos e feiticeiros oferecem dois tipos de magia: a branca e a negra; a primeira está associada a rituais que visam proteger, favorecer e beneficiar, ao passo que a segunda visa prejudicar, lesionar e destruir. Eles também fabricam e oferecem aos clientes produtos mágicos, como talismãs e amuletos; o primeiro tem como objetivo atrair a boa sorte, o segundo, proteger e repelir o mal. Para que a recompensa se concretize, é necessário que o ritual estipulado pelo mago ou feiticeiro seja executado à risca, o que exige do cliente certo custo (Pierucci, 2001).

No contexto mágico, quando uma recompensa, fortemente desejada, não vem com facilidade e rapidez, recorre-se aos compensadores, definidos como “substitutos intangíveis para a recompensa, tendo o caráter de dívidas, cujo valor deve ser aceito pela fé” (Stark e Bainbridge, 2008, p. 48). Existem dois tipos de compensadores: os gerais e os específicos. Os compensadores gerais, oferecidos pela religião, baseados no sobrenatural, oferecem recompensas para questões amplas, como a salvação eterna, a santificação, o sentido e o propósito da vida e a vida após a morte. Os compensadores específicos são oferecidos pela magia e visam recompensas específicas e imediatas, como a cura de determinada doença, a conquista de um bem material, o emprego tão desejado (Oro, 2001; Pierucci, 2001; Stark & Bainbridge, 2008).

Antes, os indivíduos que recorriam à magia tinham como objetivo proteger-se dos perigos e das incertezas da vida. Na sociedade contemporânea, no entanto, buscam a magia para resolver todos os seus problemas, sejam eles quais forem: doenças físicas, sofrimento psíquico, dificuldades econômicas, conflitos pessoais, crises afetivas, etc. Atualmente, as mais expressivas instituições mágicas que exacerbam e exploram esta premissa são as igrejas neopentecostais (Oro, 2001).

Diferente das demais religiões, o neopentecostalismo, além de atribuir poderes mágicos ao dinheiro, legitimando sua utilização para alcançar as benesses desejadas, o transformou no principal meio –quiçá o único– para obtenção de compensadores específicos, sendo “o segmento religioso que mais tem expressado e explorado de forma dinâmica e ‘marqueteira’, a sua face mágica” (Oro, 2001, p. 81). O dinheiro, que anteriormente era visto como algo sujo e pecaminoso, tornou-se o principal meio de se alcançar o lugar santíssimo. As promessas de realização dos desejos mediante rituais mágicos é o principal atrativo destas igrejas. Entretanto, elas não foram destituídas das características da religião, oferecendo também compensadores gerais. Disponibilizam, pois, ambos os serviços, o mágico como forma de proselitismo e o religioso como forma de fixação do cliente na instituição; no entanto, oscilam na importância que conferem a cada um deles (Oro, 2001).

A concepção neoliberal, articulada à perspectiva mágica, possibilitou a criação de diversas empresas do sagrado, que disputam a inovação e a eficácia dos bens simbólicos e a invenção de rituais mágicos capazes de seduzir os clientes da fé, aumentando a concorrência no mercado religioso. Fará sucesso a igreja que souber “colocar mais e em melhores condições serviços mágicos (específicos) à disposição das pessoas” (Oro, 2001, p. 81).

Além da magia e seus compensadores, as igrejas mágicas adotam a lógica do espetáculo e da teatralidade para afetar a audiência, proporcionando-lhe sensações e emoções (Brustolin, 2016). O teatro, em razão de sua capacidade de interligar o real e o imaginário, é fortemente utilizado nos cultos neopentecostais para legitimar o poder e a autoridade do líder eclesiástico perante os fiéis, assegurando-lhes a presença do sagrado e a visibilidade do invisível, nas curas milagrosas ou na libertação de dependentes químicos e pessoas “possuídas” (Campos, 1997).

O líder eclesiástico atua como coordenador do espetáculo; é ele quem distribui os papéis de cada ator, faz manutenções dramáticas necessárias e, durante a apresentação, favorece a conexão entre Deus e os fiéis (Campos, 1997). Junto com o coordenador, há equipes de representação que têm a função de preservar a integridade do espetáculo, não permitindo que a plateia perca a sintonia com a apresentação, mantendo o público afastado de qualquer estímulo dispersivo e destoante, controlando o cenário e ocultando os segredos da encenação. Ademais, pessoas de confiança do coordenador, conhecidas como cúmplices, costumam ficar no meio da plateia para empolgá-la e mantê-la emocionalmente envolvida com o ritual cênico, estimulando-a a exercer determinadas ações preestabelecidas pelo coordenador (Goffman, 2014; Campos, 1997).

O desempenho do ator é medido por sua capacidade de influenciar, de algum modo, a plateia. Em busca da performance mais satisfatória, o ator utilizará equipamentos expressivos –mobília, decorações e outros objetos cênicos– estrategicamente selecionados para favorecer a representação dramática. É fundamental que haja coerência entre todos os artefatos escolhidos para compor o cenário, chamado por Goffman (2014) de fachada, a fim de que o espetáculo do sagrado seja convincente. A participação dos fiéis na dramaturgia é imprescindível, pois “é através dela que a força grupal atua sobre cada indivíduo, inibindo eventuais raciocínios independentes e críticos” (Campos, 1997, p. 94).

Para incrementar a representação e torná-la mais eficaz em seus propósitos de produzir legitimação da autoridade, garantir adesão e estimular emoções, são utilizados diversos tipos de objetos – lenços, toalhas, óleos, garrafas d’água – que têm o objetivo de alcançar o sagrado, despertar a fé e colocá-la em ação, propiciando, assim, uma resposta da parte de Deus, uma cura ou outro tipo de milagre, o que produz no fiel uma sensação de contato direto com a transcendência. O que é consumido, portanto, não é o objeto em si, mas o símbolo a ele atribuído. Desse modo, as instituições mágicas neopentecostais proporcionam a espetacularização da magia para entusiasmar os fiéis-consumidores com as promessas de novos compensadores específicos, dispondo de um ambiente emocional e imagético (Debord, 2007) com a finalidade de restaurar a autoridade institucional, perdida na modernidade.

Dedicada à formação de uma forte liderança institucional, a denominação escolhida para o desenvolvimento da presente pesquisa foi a Igreja Apostólica Plenitude do Trono de Deus (IAPTD), fundada em 2006, pelo Apóstolo Agenor Duque e sua esposa Bispa Ingrid Duque. Essa igreja possui diversas franquias espalhadas pelo Brasil; porém, sua sede está localizada em São Paulo, na Avenida Celso Garcia, 899, na região do Brás. Seus cultos ocorrem diariamente em três horários diferentes: o matutino inicia-se às 9h00, o vespertino às 15h00 e o noturno às 19h00 – entretanto, podem ocorrer exceções como, por exemplo, dias com menos cultos ou sem cultos.

Tendo em vista a complexidade desse novo movimento, sua expansão pelo país e sua inovação na produção de bens simbólicos para atender a uma clientela religiosa sedenta por novidades (Passos, 2009), o presente trabalho analisou as relações entre espetáculo e magia na IAPTD a fim de verificar se promovem o resgate da autoridade institucional que, segundo Arendt (2011), perdeu a força na modernidade. De acordo com a autora, o advento do mundo moderno inaugurou a falência da autoridade (Arendt, 2011). Para compreender o fenômeno delimitado, serão examinadas as formas de espetacularização da fé e as manifestações da magia institucionalizada durante as celebrações.

 

Método

Instrumentos

Este trabalho adotou como metodologia o modelo qualitativo de investigação e, para adquirir informações sobre a realidade vivenciada por fiéis e líderes religiosos no contexto institucional, utilizou como instrumento metodológico a observação participante. Esta técnica favorece o contato direto com o grupo a ser estudado, pois o pesquisador se insere no universo social dos sujeitos, participando de forma ativa do seu cotidiano com o intuito de coletar dados precisos sobre as relações intersubjetivas, os quais não poderiam ser apreendidos por meio de entrevistas (Minayo, 2009). Conforme Proença (2007), a observação participante possibilita ao investigador uma maior aproximação do fenômeno, uma inserção mais profunda no ambiente institucional e uma vivência mais autêntica das experiências transcendentais, alcançando, assim, uma compreensão da totalidade dos vínculos, símbolos, normas e doutrinas da igreja.

Diferentemente das entrevistas, que permitem ao participante filtrar e controlar a produção discursiva, esse tipo de observação coloca o pesquisador em contato com a realidade in loco, em sua manifestação espontânea, sem nenhuma espécie de envernizamento. Não significa que o real se apresenta em estado puro nem que será captado em sua dimensão estática. O pesquisador interfere na instituição ao participar das cerimônias diárias, assim como submete o mundo à interpretação. Não se trata, portanto, de um processo neutro, desprovido de interferências subjetivas. De acordo com Geertz (1998), o investigador é um estrangeiro e jamais será um nativo. Contudo, à medida que se envolve com o campo de pesquisa e se aproxima dos indivíduos, se familiariza com o novo cenário e as estruturas de significação, conseguindo interpretá-los conforme os sistemas linguísticos locais.

A coleta de dados da pesquisa contou com a orientação de um roteiro de observação, elaborado previamente, que passou por reformulações após a inserção do pesquisador em campo ao deparar-se com as singularidades institucionais. Foram observados os comportamentos dos participantes do culto antes do início da cerimônia; as músicas tocadas e suas mensagens; os testemunhos de fiéis que haviam recebido algum milagre; as orações; as pregações; o pedido de ofertas e dízimos; a realização dos rituais mágicos e a comercialização de produtos ungidos e bens simbólicos.

Após cada visita, foram elaborados diários de campo nos quais se descreviam de forma detalhada todos os acontecimentos observados durante as celebrações. Este instrumento foi utilizado para sistematizar toda a liturgia institucional, a fim de identificar e analisar as variáveis que aparecem constantemente nas cerimônias e as que são específicas de cada campanha religiosa. Segundo Weber (2009), os diários de campo são notas de observação e escritas da experiência do pesquisador, que apresentam relativa organização, seguem a cronologia dos acontecimentos, não possuem ainda coerência argumentativa e almejam a objetividade dos fatos, sendo, no entanto, atravessados pela subjetividade de quem vive e interpreta os fenômenos observados. São textos descritivos, em alguma medida objetivos, mas também são formas de narração, pois levam em conta a vivência do investigador.

 

Procedimentos

Foram realizadas periódicas visitas institucionais: a maioria ocorreu na sede da instituição, localizada na Avenida Celso Garcia, 899 – Brás, São Paulo - SP; e outras na filial localizada na Avenida Deputado Cantidio Sampaio, 970 – Vila Souza, São Paulo - SP. As visitas ocorreram nos três horários de culto, disponibilizados pela igreja; porém, majoritariamente no período da manhã. Optou-se por participar de diferentes campanhas oferecidas pela instituição: libertação espiritual, vida financeira e relações amorosas, entre outros temas. Assim, pôde-se adquirir mais informações sobre a agremiação, seus líderes e fiéis. Em todas essas visitas, independente da campanha, seguiu-se o roteiro de observação para a coleta de dados. Ao finalizar a visita, era produzido o diário de campo com a descrição precisa da dinâmica institucional, dos rituais religiosos e das ações dos fiéis para futura análise dos dados coletados.

A interpretação das informações geradas pela observação participante seguiu o método da análise de conteúdo, desenvolvido por Bardin (2011), cuja proposta prevê o cumprimento de três fases cronológicas. A primeira fase, pré-análise, é o momento em que se entrará em contato com o material coletado, organizando-o e sistematizando-o. Hipóteses e estratégias são criadas a partir das impressões suscitadas pelo contato inicial, visando o desenvolvimento de uma análise futura (Bardin, 2011). Nessa fase, após a observação participante, diários de campo foram confeccionados, com a descrição minuciosa de todos os acontecimentos observados durante as celebrações. Por meio desse instrumento, foi possível organizar metodicamente os dados obtidos nos cultos com o propósito de identificar as características específicas das dinâmicas, dispositivos, discursos e atos, favorecendo, assim, a construção de hipóteses.

Após concluída a primeira fase, inicia-se a exploração do material. É nessa fase que todas as decisões tomadas serão aplicadas para realização da análise propriamente dita (Bardin, 2011). Os dados coletados pela observação participante e organizados em diários de campo foram distribuídos nas seguintes categorias, relacionadas à liturgia dos cultos: Preparação para a Imersão, Manutenção da Imersão, Comprovação do Poder, Comércio Mágico e Grand Finale. Já na terceira fase, tratamento dos resultados obtidos e interpretação, os resultados são selecionados e sintetizados para a realização de inferências e interpretações (Bardin, 2011). Foi nesta fase que os conteúdos das observações, categorizados por sua funcionalidade litúrgica, foram analisados com base nos conceitos de espetáculo e magia, permitindo a constatação de dois grandes momentos do culto: o Grande Espetáculo e o Grande Ritual.

 

Resultados

Por meio da análise dos dados obtidos a partir da observação participativa, foram identificados dois eventos principais durante toda a representação mágica da Igreja Apostólica Plenitude do Trono de Deus (IAPTD): o Grande Espetáculo, que diz respeito à cerimônia religiosa como um todo; e o Grande Ritual, que ocorre ao final do Grande Espetáculo e refere-se ao conjunto de ações preestabelecidas e à utilização de bens simbólicos que visam à aquisição de determinada recompensa específica prometida inicialmente. O Grande Espetáculo dura, em média, quatro horas e trinta minutos; entretanto, dependendo do evento, a duração pode se estender. Para os atores-magos, a equipe de representação e os clientes-espectadores, o Grande Espetáculo é chamado de “Campanhas” e ocorre semanalmente em um dia específico por determinado período de tempo. Cada Grande Espetáculo possui um tema próprio –prosperidade, cura ou libertação–, além de cenário e figurino relacionados ao tema.

Todo espetáculo da IAPTD pode ser dividido em cinco etapas: 1) Preparação para a Imersão, que acontece antes do início do Grande Espetáculo e tem como objetivo introduzir a plateia na representação, combatendo qualquer pensamento discrepante e induzindo-a a dirigir toda sua atenção aos estímulos apresentados pelo coordenador do espetáculo; 2) Manutenção da Imersão, momento em que se inicia o Grande Espetáculo por meio da atuação de atores que desempenham o papel de músicos e visam manter a plateia imersa na representação, sem perder a sintonia grupal, intensificando o contágio emocional e desafiando a audiência a agir de modo a comprovar sua imersão; 3) Comprovação do Poder, fase em que a figura carismática entra em cena e persuade a plateia sobre a eficiência do seu poder mediante a prática de orações, a realização de profecias e a conjuração de magias; 4) Comércio Mágico, momento em que a figura carismática, após comprovar seu poder, comercializa amuletos e talismãs consagrados por ela ao vivo, realiza rituais mágicos e recolhe contribuições financeiras da audiência, gerando o ápice da catarse, até então; e o 5) Grand Finale, momento em que o Grande Ritual será realizado.

A Preparação para a Imersão ocorre antes do cliente-espectador entrar no ambiente em que se desenrolará o Grande Espetáculo. Na entrada da sede da IAPTD, há um grande caderno em cima de uma mesa em que os clientes-espectadores podem escrever seus nomes e seus pedidos. Ao lado deste caderno, um mago-ator da equipe de representação, com um figurino específico, desempenha um papel ritualístico: unge com óleo as mãos dos membros que entram na instituição e, após ungi-los, se necessário, lhes entrega algum talismã ou amuleto que será utilizado durante o Grande Ritual. No Grande Espetáculo da “Sexta-Feira Forte com a Quebra das Alianças”, na entrada da instituição, o mago-ator, que usava como figurino uma camiseta polo preta, com a inscrição “Sexta-Feira Forte” na parte de trás e o símbolo da igreja no peito, ungia as mãos dos clientes-espectadores e lhes distribuía dois anéis de plástico entrelaçados, um da cor azul e outro dourado. O cliente-espectador, durante o Grande Ritual, deveria quebrar esses anéis para que toda “maldição” que estivesse em sua vida fosse “quebrada”. O espetáculo se inicia na porta da instituição.

Após passar pelo primeiro ator até chegar ao recinto onde o Grande Espetáculo ocorrerá, os clientes-espectadores atravessam um extenso corredor no qual se avistam banners com a divulgação de atividades da igreja, de seus canais de rádio e TV e de pedidos de doações, ofertas e dízimos. No caminho até o templo, há uma sala em que os fiéis podem inscrever-se para um retiro espiritual; uma loja de roupas na qual se vendem vestimentas e acessórios da grife Duquesa, própria da Bispa Ingrid Duque; a livraria da IAPTD, onde se vendem livros escritos pelo próprio apóstolo e por sua esposa, CD’s com as músicas preferidas do apóstolo, entre outros livros e CD’s de músicas evangélicas. Além disso, vendem-se, também, miniaturas da Arca da Aliança, do Candelabro, estolas e pequenos frascos com essências, cada um com nome próprio e função específica, como vida sentimental, revestimento de poder, prosperidade, cura, libertação, entre outros.

Ao adentrar no local do Grande Espetáculo, o cliente-espectador depara com um enorme cenário capaz de acomodar milhares de indivíduos. O palco é alto e largo, semelhante aos palcos de teatro. Em cima do palco, há uma grande representação da Arca da Aliança e do Candelabro assim como da Estrela de Davi no chão. Identificam-se ainda taças douradas em cima de uma mesa coberta por um manto branco, cadeiras com estofados vermelhos e adornos dourados, instrumentos musicais e um telão que ocupa quase toda a extensão da parede do fundo do palco –que separa o cenário dos bastidores por duas entradas laterais– e dois telões em cada lateral do palco, para que, aqueles que não se assentaram em locais privilegiados, não percam nenhum detalhe do Grande Espetáculo e do Grande Ritual que serão transmitidos ao vivo pelos cameramen, posicionados estrategicamente no cenário.

Nos telões, antes do início do Grande Espetáculo, são exibidos clipes musicais evangélicos, propagandas de serviços mágicos, comercialização de talismãs e amuletos e pedidos de doações, contribuições e dízimos. Sempre que um vídeo acaba, inicia-se outro imediatamente. Além disso, duas filas de clientes-espectadores, uma de cada lado do palco, se formam para receber serviços mágicos dos magos-atores. Um de cada vez, os clientes-espectadores aproximam-se da figura carismática e fazem seu pedido. Os magos-atores prontamente os atendem. Não há pedido impossível. Eles conjuram sua magia, impõem suas mãos na cabeça do cliente-espectador, assopram em seus rostos, gritam, falam em línguas estranhas e movimentam-se de forma extática. Durante este ritual, o cliente-espectador vê-se contagiado pelos poderes do mago-ator podendo chorar, gritar, falar em outras línguas, manifestar possessão, perder o equilíbrio e ir ao chão.

Dependendo do tema, o cenário é montado com estímulos específicos que remetem os fiéis ao Grande Espetáculo e ao Grande Ritual do dia. No Grande Espetáculo da “Pesca Maravilhosa”, havia um navio, com velas e âncora, em cima do palco. Ao lado desse navio, encontrava-se uma grande ostra com uma pérola branca dentro. Tecidos da cor azul, que iam do teto ao chão, estavam grudados na parede do palco. Peixes, estrelas-do-mar e cavalos-marinhos foram colados sob os panos e ao longo da parede. A iluminação possuía uma coloração esverdeada, dando a sensação do reflexo da água do mar. Um cenário teatral perfeito para a realização do Grande Espetáculo e do Grande Ritual.

Na fase da Manutenção da Imersão, o Grande Espetáculo inicia-se com os atores que representam papéis relacionados a performances musicais, os quais entram em cena pela passagem lateral dos bastidores que dá acesso ao palco. Cada ator se posiciona em seu respectivo instrumento e o cameraman entra em ação, focalizando nas partes principais da representação e projetando-as nos telões do cenário. Imediatamente, atores da equipe de representação começam a andar pelos corredores, olhando para a plateia, cantando em alta voz, batendo palmas no ritmo da música e aproximando-se daqueles que parecem não estar prestando atenção ao espetáculo musical a fim de contagiá-los e estimulá-los a repetir o comportamento do animador. Quando alguém se senta, um membro da equipe vai até a pessoa e pede para que se levante. Quando alguém não bate palmas, aproximam-se dele, animados, batendo palma e cantando alto. Quando a plateia demonstra estar dispersa, todos da equipe de representação começam a bater palmas mais forte, cantar mais alto, andar em volta das cadeiras onde as pessoas estão sentadas, num pedido para que todos sigam seu exemplo. Essa atuação cênica e performática, se necessário, sucede-se em todas as músicas.

No Grande Espetáculo da “Sexta-Feira Forte no Vale do Sal”, quando os atores da banda entraram em cena, aquele que representava o papel de cantor pediu para que a plateia se levantasse, aplaudisse a Jesus, desse um “sorriso bonito para o irmão” que estivesse a seu lado e o cumprimentasse. A equipe de representação já estava posicionada nos corredores e a banda começou a tocar uma trilha sonora, enquanto o cantor questionava a plateia: “Alguém veio adorar?”. A plateia gritou palavras que julgou apropriadas para demonstrar que estava disposta a realizar a adoração. Então, iniciou-se a primeira música. Quase todos os clientes-espectadores estavam de olhos fechados, braços levantados e mãos abertas. Após a primeira música, o cantor, novamente, questionou: “Respondam com sinceridade, tem adorador nesta tarde?”. A plateia gritou em concordância. Diversas vezes, ao longo das demais canções, o músico colocou à prova o entusiasmo da audiência e estrategicamente pôs em dúvida a presença ali de verdadeiros adoradores. Em resposta, os fiéis se mostravam exultantes. Além disso, o cantor dava ordens a serem seguidas durante as canções, pedia para que levantassem as mãos, repetissem determinada palavra ou frase e batessem palmas no ritmo da música. Todas essas ações foram reproduzidas pela equipe de representação, que não permitiu que ninguém da plateia ficasse fora de sintonia.

Durante as músicas, inicia-se a Comprovação do Poder. O mago-ator principal entra em cena pelos bastidores com microfone em mãos, cantando a música que está sendo tocada, assumindo o andamento do Grande Espetáculo e elevando o contágio emocional da plateia. Enquanto os atores músicos tocam, o mago-ator, com sua voz potente, começa a orar e a guiar as orações do público. Ao finalizar, os atores musicais se retiram, uma trilha sonora permanece ao longo da representação e o mago-ator começa a chamar pessoas que foram curadas no momento da oração para dar seu testemunho. Durante este processo, conjura magias, profetiza, recebe mensagens diretas do próprio Deus, emite comportamentos extáticos e manifesta a glossolalia.

No Grande Espetáculo da “Corrente dos 70”, após o mago-ator principal assumir as rédeas do espetáculo, incentivava os clientes-espectadores a pedirem a Deus que os incendiasse. Em alto tom de voz, gritava efusivamente: “Seja cheio, seja renovado, fale em línguas, levante as tuas mãos e dá glória! Dá aleluia!”. Neste momento, a trilha sonora se intensificava, manifestações emocionais iam acontecendo, pessoas entravam em êxtase e em transe, tremiam, caiam no chão, falavam em línguas e choravam. Em meio ao frenesi coletivo, como forma de legitimar o próprio poder e autoridade, o líder da representação dramática compartilhou sua primeira profecia dizendo que os integrantes da plateia foram escolhidos a dedo por Deus para estarem ali presentes a fim de abençoá-los naquele dia, quebrando todas as maldições. A plateia se contagiava e começava a evocar palavras mágicas capazes de homologar o conjuro: “Eu recebo!”, “Tomo posse”, “Eu creio!”.

Após a primeira profecia, o mago-ator começava a orar e guiar a plateia na oração: “Eu já não aguento mais a luta, a prova, a dificuldade, o deserto, eu já não aguento mais o câncer, o mioma, o caroço, o desemprego, as portas fechadas”. Imediatamente, os clientes-espectadores pegaram fotos de pessoas –tanto impressas quanto armazenadas no celular– carteiras de trabalho e documentos, levantaram para cima e começaram a orar crendo que, por intermédio desse ritual, as pessoas da foto seriam abençoadas, conseguiriam empregos e suas causas na justiça seriam vencidas. Em todo momento, o mago-ator pedia para que a plateia falasse em línguas estranhas ou adorasse de forma específica, sempre fazendo de tudo para que a ilusão do espetáculo não se desfizesse. Repetia diversas vezes: “se for pra ficar de boca fechada pode ir embora”. Sua oração se baseava em clamar para que Deus visitasse a casa de cada um e quebrasse “as obras de macumbaria” (sic). Pedia para que, no final da oração, os espectadores da plateia gritassem “Eu creio!” três vezes, como um ritual mágico que ratificaria as súplicas. Todos gritavam intensamente.

Após a oração, solicitava que quem tivesse sido curado naquele momento fosse à frente para testemunhar. Rapidamente, a equipe de representação começava a andar pelos corredores, vociferando: “Quem foi curado? Cadê você? Quem sentia dores e não sente mais?”. Algumas pessoas levantavam as mãos e eram guiadas até a frente do palco para testemunhar. O cliente-espectador contava o milagre alcançado para um ator da equipe de representação, que o recontava em alta voz e de forma cênica, no microfone, para que toda a audiência escutasse. Muitos alegavam que tinham recebido a cura de doenças físicas, celebravam o desaparecimento instantâneo de dores e caroços, testemunhavam milagres que haviam acontecido durante a semana, como a conquista de um emprego, a aquisição de um carro, entre outras recompensas.

Durante todo o Grande Espetáculo, o mago-ator falava: “Se estão me ouvindo digam ‘amém’” e a plateia gritava: “Amém!”. Tratava-se de uma estratégia para não permitir que nenhum membro da audiência perdesse o foco do que era dito e, além disso, uma oportunidade para avaliar o grau de sintonia do público. Se por acaso o mago-ator ficasse insatisfeito com a resposta da plateia, pedia para que vociferasse ainda mais alto.

Ao longo do Grande Espetáculo, o mago-ator assemelhava-se a um maestro, regendo tudo o que acontecia. Rapidamente levantava os braços sinalizando para aumentar a trilha sonora, depois pedia para abaixar ou mudar a música; aumentar o volume de seu microfone, depois abaixar; tocar determinada música; pedia para o cameraman focar aqui ou ali. Diversas vezes o mago-ator aparentava ficar tonto, perdendo o equilíbrio e quase caindo, alegando que a glória de Deus estava muito forte sobre ele.

Ademais, o mago-ator compartilhava diversas profecias reveladas diretamente por Deus, levando o público ao delírio, como: “Deus me trouxe aqui nesta tarde pra dizer pra você que esse deserto acaba hoje [línguas estranhas], essa luta acaba hoje [línguas estranhas], essa tempestade se acalma hoje e o nome dele é glorificado. Vai ter anjo visitando sua conta bancária [...] Deus falou pra mim agora que vai aparecer dinheiro na sua conta bancária. Deus está dizendo: ‘Eu vou apagar o seu nome do SPC e do SERASA!’”. Desafiava o público: “Alguém aceita sofrer mais um pouquinho? Aceita a luta mais um pouco? Então, diga: ‘É hoje! É hoje que a prova vai acabar!’”. Confirmava sua autoridade: “Eu estou pregando para você debaixo da graça de Deus. A provisão vai chegar ou então eu nunca fui homem de Deus”. Sempre no final de cada uma dessas frases, a trilha sonora aumentava, todos os espectadores pulavam, pronunciavam palavras mágicas e choravam. Inúmeras vezes, o mago-ator dizia que o milagre que Deus havia programado para acontecer daqui a semanas, meses ou anos, iria acontecer daqui a 70 horas, sendo está a conquista prometida por meio do Grande Ritual do dia.

Após a demonstração do poder do líder religioso e a validação da autoridade institucional, dá-se início o Comércio Mágico. O mago-ator convoca a equipe de representação a se posicionar estrategicamente no cenário para que o mercado da fé aconteça. Os integrantes da equipe – auxiliares da dramatização – circulam pelo templo carregando produtos a serem comercializados naquele dia, além de sacos para o depósito de dinheiro e máquinas de cartão de crédito para quem não possui a quantia necessária em mãos. Para validar a eficiência de seu produto, o mago-ator utiliza-se de alguns trechos bíblicos e desafia a plateia.

No Grande Espetáculo das “Sete Terças-Feiras da Queda das Muralhas”, a maga-atriz, vestida de roupas camufladas como o uniforme do exército, questiona o público: “Quem aqui é ladrão? Ladrão. Tem ladrão aqui?” – enquanto fuzilava a todos com o olhar. “Porque quem não dá o dízimo rouba a Deus! É ladrão!”. Começou a dizer que, quando alguém pensa em não dar o dízimo para pagar as dívidas, é satanás que está induzindo seus pensamentos. Determinou que os clientes-espectadores não pagassem suas dívidas com o dinheiro do dízimo, pois, se o fizessem, estariam roubando a Deus e se tornando ladrões. Após essa advertência, chamou a equipe de representação para que se posicionasse em frente ao palco com os envelopes do dízimo e revelou aos presentes que, dentro dos envelopes, havia cinco sementes de mostarda. Leu a passagem bíblica em que Cristo afirma que, se tivéssemos a fé do tamanho de um grão de mostarda, moveríamos montanhas. Alertou que só quem fosse dar o dízimo poderia pegar aquele envelope com as sementes. Disse que, quem fizesse esse ato de fé, no dia seguinte poderia ir à sua agência bancária falar com o gerente e pedir para financiar sua casa própria; porém, teria que jogar a semente de mostarda na mesa do gerente para que Deus favorecesse o crescimento dos frutos. Em seguida, tocou-se uma música específica enquanto os clientes-espectadores se levantavam para ir pegar os envelopes. Aqueles que não levantavam eram incentivados a fazê-lo pelos membros da equipe de representação. Além deste produto, a maga-atriz começou a comercializar fitas da cor vermelha que, segundo ela, representavam o sangue de Cristo. Essas fitas serviriam como amuletos protegendo qualquer pessoa, objeto ou lugar em que o cliente-espectador a amarrasse. Se amarrasse no corpo, não ficaria doente; se deixasse no carro, ele não seria roubado; se a pendurasse na janela da casa, ninguém a invadiria. Após o comércio, membros da equipe trocaram seus figurinos por mantos prateados e brilhantes e carregaram pela igreja a Arca da Aliança enquanto outros membros da equipe tocavam trombetas. Imediatamente, vários clientes-espectadores correram em direção à Arca da Aliança para tocá-la.

Após a venda dos amuletos e/ou talismãs, chega o momento mais esperado por todos os clientes-espectadores, o Grand Finale. É nesta última etapa do Grande Espetáculo que ocorrerá o serviço mágico do Grande Ritual. O mago-ator, após preparar toda a plateia para esse momento, começa a organizar o cenário e a equipe de representação para que o Grande Ritual se inicie. São explicados aos clientes-espectadores os procedimentos de participação. Em alguns casos, basta se aproximar e realizar o ritual. Em outros, é necessária alguma contribuição financeira.

Durante o Grande Ritual do Espetáculo da “Sexta-Feira Forte: Rosa de Saron – A Quebra da Maldição”, o mago-ator, aos gritos, descreveu detalhadamente toda dor, perseguição, sofrimento e angústia que Cristo sofreu ao morrer por “culpa” de todos que estavam ali presentes, enquanto passava no telão atrás dele cenas de Jesus sendo açoitado e crucificado, do filme “A Paixão de Cristo”. Na sequência, solicitou à equipe de representação que trouxesse os amuletos que seriam comercializados e utilizados durante o Grand Finale. Rapidamente, a equipe lhe entregou diversas rosas que seriam consagradas ao vivo e se converteriam em uma espécie de talismã que, segundo o mago-ator, teria o poder fantástico de atrair para si toda maldição e/ou demônios que pudessem estar presentes em alguém ou em algum lugar. Entretanto, para que os clientes-espectadores pudessem adquirir este amuleto, precisariam subir ao palco e comprá-lo. O mago-ator iniciou sua oferta no valor de mil reais. Seguindo a lógica de “quanto maior o sacrifício maior a recompensa”, clientes-espectadores sobem ao palco para obter a rosa, pois “a dimensão da graça esperada guarda relação com a quantidade ofertada” (Oro, 2001, p. 83). Ao perceber que não havia mais pessoas dispostas a comprar o amuleto por mil reais, o mago-ator abaixou o preço para quinhentos reais, depois trezentos, duzentos e cem, sucessivamente. Quando percebia que a plateia estava resistente a adquirir a rosa, o mago-ator começava a descrever tudo o que poderiam fazer com ela: se havia alguma doença de pele, poderiam se lavar durante o banho com as pétalas da rosa e seriam curados; se fosse alguma moléstia interna, poderiam comer as pétalas ou preparar um chá com elas; caso fosse um problema com terceiro, poderiam oferecer o chá a ele e o problema seria resolvido.

Em certo momento, uma cliente-espectadora que foi adquirir a rosa “manifestou um demônio” que o mago-ator classificou como um ser maligno proveniente do panteão afro-brasileiro. Ele, prontamente, pegou uma das rosas ungidas, chamou a atenção da plateia e demonstrou um dos poderes do amuleto. Disse que, quando contasse até três, o demônio que estava dentro da cliente-espectadora sairia e entraria na rosa. Contou até três, deu um passo pra trás como se recebesse um empurrão e a cliente-espectadora já não estava mais possessa. Não satisfeito e disposto a aumentar a carga dramática da encenação, disse que, quando contasse até três e balançasse a rosa em direção à cliente-espectadora que já estava “liberta”, o demônio voltaria a seu corpo. Dito e feito. Após a contagem e o balançar da rosa, o demônio apossou-se da mulher e ela voltou a se contorcer. Depois, o mago-ator solicitou que a equipe de representação orasse pela cliente-espectadora para que o demônio fosse expulso; afinal, só seria libertado pela rosa quem a comprasse.

Discussão

Como se percebe ao longo de sua história, o (neo)pentecostalismo é um movimento inovador desde suas origens. A todo momento ele se reinventa, trabalhando com “empreendedorismo, participação, adaptabilidade e entusiasmo” (Quitério, 2018, p. 23). Desde sua gênese, diversos cismas ocorreram, desencadeando a adaptação do projeto (neo)pentecostal a um mundo secularizado e desencantado, moldando-se às culturas locais e às perspectivas globais, “demonstrando ser uma metamorfose constante” (Quitério, 2018, p. 23).

Como na contemporaneidade a secularização e a perda da tradição geraram o fim das religiões herdadas e o enfraquecimento da autoridade e do poder das instituições cristãs tradicionais (Arendt, 1997), o cliente-espectador contemporâneo não se vê mais na obrigação de seguir as normas institucionais, muito menos vê necessidade de filiar-se a uma instituição que o fará sentir-se culpado ou lhe exigirá que renuncie seus prazeres e desejos para alcançar uma condição espiritual mais elevada ou uma suposta salvação (Mallimaci, 2008; Mariano, 2014). Os diversos clientes-espectadores presentes na IAPTD recorrem aos Grandes Espetáculos e Rituais como um pronto-socorro mágico, almejando conquistar seus desejos, mesmo sendo clientes-espectadores de outras instituições cristãs (Mariano, 2014; Oro, 2001). Atualmente, eles optam por frequentar igrejas menos sectárias e ascéticas, que se adaptam às expectativas da clientela, adotando um discurso eficiente e um ritual competente, capazes de amenizar as angústias e incertezas geradas pela contemporaneidade. Trata-se de igrejas que se promovem no mercado da fé graças aos compensadores específicos que lançam a cada momento (Stark e Bainbridge, 2008), prometendo aos fiéis-clientes as recompensas desejadas, caso consumam serviços ou produtos mágicos, seguindo fielmente o ritual preestabelecido pelo mago-ator.

Além disso, foi possível constatar que a Igreja Plenitude do Trono de Deus apresenta em suas doutrinas o hibridismo das três ondas do pentecostalismo, privilegiando as características mais eficazes para a realização de seu espetáculo: ênfase nos dons espirituais e nas práticas exorcistas como forma de legitimar o poder e a autoridade do mago-ator; suavização do ascetismo e do sectarismo cristão para maior aceitação e permanência de seus clientes-espectadores; pregação da teologia da prosperidade, que visa alcançar os indivíduos contemporâneos que desejam receber as benesses divinas no aqui e agora; utilização do dinheiro e outros objetos em rituais mágicos, que funcionam como mediadores do sagrado, para a comercialização de amuletos, talismãs e serviços mágicos; utilização de meios de comunicação de massa para divulgar seus serviços e produtos com poderes extraordinários, atraindo mais consumidores.

No competitivo mercado religioso, as instituições e seus líderes precisam se destacar das demais igrejas para poder conquistar a clientela. Existem três características da IAPTD que a diferenciam de suas concorrentes: a designação do líder supremo da organização com o título “apóstolo”, criando um nível espiritual mais elevado que os “pastores” e “bispos”; a utilização de elementos simbólicos do judaísmo em suas cerimônias e rituais – objetos, vestimentas ou datas comemorativas; e a exacerbação de componentes expressivos do cenário, de movimentos corporais dramáticos e manifestações performáticas durante a representação (Goffman, 1985). A primeira característica legitima a autoridade e o poder mágico do apóstolo e seus pupilos, posicionando-os acima dos demais magos-atores das instituições concorrentes; a segunda amplia o espectro de produtos e serviços mágicos oferecidos por esta instituição, atraindo mais clientes-espectadores; e a terceira cria um ambiente propício para o contágio do transe religioso, fazendo com que o cliente-espectador sinta-se invadido pelo sagrado. Essas características são inovações neopentecostais que funcionam como estratégias de marketing (Oro, 2001).

Portanto, por meio dos serviços e produtos mágicos, a IAPTD tornou-se uma empresa do sagrado, sempre criando bens simbólicos e rituais mágicos capazes de realizar os desejos de uma clientela sedenta por novidades, contribuindo, assim, para ampliar a concorrência no mercado religioso. O teatro, em razão de sua capacidade de interligar o real e o imaginário, é fortemente utilizado em seus cultos para legitimar o poder e a autoridade do líder eclesiástico, promovendo a presença do sagrado e a visibilidade do invisível.

Antigamente, aqueles que frequentavam instituições religiosas obedeciam às figuras eclesiásticas simplesmente pela autoridade que sua posição lhes outorgava. Atualmente, é necessária a construção de um espetáculo, incrementado com rituais mágicos, para que a plateia veja naquele indivíduo, um ser dotado de poderes sobrenaturais, capaz de manipular o visível e o invisível, fazendo com que aqueles que o seguem, curvem-se perante uma autoridade construída mágica e cenicamente. Com as luzes, músicas, coreografias, atores e membros em êxtase, o líder religioso, durante as cerimônias e rituais, ergue-se, fica ereto, apresenta gesticulações expressivas, emposta a voz, faz um jogo de cena, performance e magia, transformando o espaço litúrgico num cenário perfeito para legitimar seu poder e autoridade.

 

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1 Mestre em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, no Programa de Pós-graduação em Distúrbios do Desenvolvimento. Correio Eletrônico: fernandoreis042@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5958-0447.

2 Psicóloga Social e Professora do Curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre e Doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social. Endereço para correspondência: Rua da Consolação, 930. Prédio João Calvino. Centro de Ciências Biológicas e da Saúde. Bairro: Consolação. São Paulo - SP. Caixa Postal: 01302-907. Brasil. Correio Eletrônico: brunasuruagy@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9616-4960.