Anistia e ruptura: Rememorar, julgar, responsabilizar para não repetir

Amnistía y ruptura: Recordar, juzgar, responsabilizar por no repetir

Amnesty and rupture: Remember, judge, take responsibility for not repeating


Recepción: 5 de enero de 2023 / Aceptación: 31 de agosto de 2023

 

Rita Maria Manso De Barros1

 

DOI: https://doi.org/10.54255/lim.vol12.num24.709

Licencia CC BY 4.0.

Resumo

Como a palavra anistia voltou a circular no Brasil, referente aos supostos, e até mesmo prováveis, crimes cometidos por seus inúmeros atores durante os quatro anos do governo de extrema-direita (2018-2022), fugindo da responsabilização pelos efeitos de seus atos e omissões, este artigo discute, a partir do referencial teórico psicanalítico, os mecanismos que levam à reprodução do mesmo e suas consequências íntimas e coletivas quando uma situação traumática não é superada. Expõe o pensamento freudiano sobre o trauma e a necessidade de romper com a compulsão a repetir que ele impulsiona. Toma o pensamento lacaniano sobre tyché e automaton e o destino peculiar que Ferenczi confere ao conceito de negação do fato traumático. Destaca os momentos mais recentes de trauma coletivo vivido no Brasil e o tratamento deliberadamente displicente dado à pandemia e o sufocamento de manifestações artísticas, intelectuais, científicas. Vários países da América do Sul sofreram golpes militares e viveram sob o jugo de ditadores no século XX. Contudo, o Brasil foi o único que não apurou e julgou os crimes perpetrados durante a ditadura (1964-1985), o que causa apreensão que isso se repita após os quatro anos de destruição e terror vividos sob o regime fascista de Bolsonaro e seus asseclas. O artigo propõe a orientação psicanalítica que coloca a necessidade de romper com a reprodução do mesmo para superação de traumas, construção de memória para continuidade da vida.

Palavras-chave: anistia, repetição, crimes em massa, trauma, ruptura, negação

 

Resumen

Como la palabra amnistía ha vuelto a circular en Brasil, en referencia a los presuntos, e incluso probables, crímenes cometidos por sus numerosos actores durante los cuatro años de gobierno de ultraderecha (2018-2022), huyendo de la rendición de cuentas por los efectos de sus actos y omisiones, este artículo discute, basado en el marco teórico psicoanalítico, los mecanismos que conducen a su reproducción y sus consecuencias íntimas y colectivas cuando no se supera una situación traumática. Expone el pensamiento freudiano sobre el trauma y la necesidad de romper con la compulsión de repetición que impulsa. Toma el pensamiento de Jacques Lacan sobre tyché y autómaton y el destino peculiar que Ferenczi le da al concepto de negación del hecho traumático. Destaca los momentos más recientes de trauma colectivo vividos en Brasil y el tratamiento deliberadamente negligente dado a la pandemia y la asfixia de las manifestaciones artísticas, intelectuales y científicas. Varios países de América del Sur sufrieron golpes militares y vivieron bajo el yugo de dictadores en el siglo XX. Sin embargo, Brasil fue el único que no investigó y juzgó los crímenes perpetrados durante la dictadura (1964-1985), lo que genera preocupación de que esto se repita luego de los cuatro años de destrucción y terror vividos bajo el régimen fascista de Bolsonaro y su secuaces. El artículo propone una orientación psicoanalítica que destaca la necesidad de romper con la reproducción de lo mismo para superar los traumas, construyendo memoria para la continuidad de la vida.

Palabras clave: amnistía, repetición, crímenes masivos, trauma, ruptura, negación

 

Abstract

As the word amnesty has returned to circulate in Brazil, referring to the alleged, and even probable, crimes committed by its numerous actors during the four years of the far-right government (2018-2022), fleeing accountability for the effects of their acts and omissions; based on the psychoanalytic theoretical framework this article discusses the mechanisms that lead to its reproduction and its intimate and collective consequences when a traumatic situation is not overcome. It exposes Freudian thinking about trauma and the need to break with the compulsion to repeat that it drives. It takes the Lacanian thought about tyché and automaton and the peculiar fate that Ferenczi gives to the concept of denial of the traumatic fact. It highlights the most recent moments of collective trauma experienced in Brazil and the deliberately negligent treatment given to the pandemic and the suffocation of artistic, intellectual and scientific manifestations. Several countries in South America suffered military coups and lived under the yoke of dictators in the 20th century. However, Brazil was the only one that did not investigate and judge the crimes perpetrated during the dictatorship (1964-1985), which causes concern that this will be repeated after the four years of destruction and terror experienced under the fascist regime of Bolsonaro and his followers. The article proposes a psychoanalytic orientation that highlights the need to break with the reproduction of the same to overcome traumas, building memory for the continuity of life.

Keywords: amnesty, repetition, mass crimes, trauma, rupture, denial

A minha alma tá armada e apontada

Para cara do sossego!

(Sêgo! Sêgo! Sêgo! Sêgo!)

Pois paz sem voz, paz sem voz

Não é paz, é medo!

(Medo! Medo! Medo! Medo!)

O Rappa,19992.

 

Ora, ora, quem diria, a palavra anistia voltou a circular no Brasil! E referente aos supostos, e até mesmo prováveis, crimes cometidos por seus inúmeros atores durante os quatro anos do governo de extrema-direita no Brasil (2018-2022), comandado pelo ex-presidente Jair Messias Bolsonaro. A ideia central é escapar da responsabilização pelos efeitos de seus atos e omissões. Então serão precisas rupturas!

Como psicanalista, preocupa-me o preço que as subjetividades brasileiras pagam pela negação de acontecimentos que lhes lesaram não só em suas vidas, mas também no mais íntimo de seus seres e que a justiça não reconheça os meliantes como autores de crimes e busquem a reparação. Ao contrário: anistiar um reconhecido infrator sem que ele passe por julgamento justo é condenar a vítima a manter a ferida aberta, é torná-la vulnerável, exposta e indefesa a novos crimes, abandonada a um país sem lei e sem ordem. É isso que vemos em casos de feminicídio onde a vítima é transformada em autora, provocadora da própria morte.

Como alguns de nós sabemos, (infelizmente tal conhecimento é roubado da maioria do povo brasileiro), as ditaduras dos países do Cone Sul (Brasil, Uruguai, Argentina e Chile) associaram-se, com a supervisão dos Estados Unidos da América do Norte, na Operação Condor. Esta tinha por objetivo exterminar aqueles que eram contra os regimes autoritários impostos. Foram centenas de milhares de torturados, mortos, desaparecidos pelos militares e polícias armados, com o incentivo e suporte de empresários. Contudo, ao contrário dos demais países, o Brasil não julgou os praticantes dessas atrocidades.

A vivência da ditadura no Brasil, iniciada em 1964, serve de laboratório e se espalha por países vizinhos. No Chile, o general Augusto Pinochet derruba o presidente democraticamente eleito Salvador Allende em 11 de setembro de 1973, causando mais de três mil mortes, mais de mil desaparecidos e mais de 28 mil torturadas. No Uruguai, o golpe empresarial-militar aconteceu em 1973, logo após o do Chile e permaneceu por doze anos. Praticou censura e brutalidade policial que produziu 202 mortos, 196 desaparecidos e forçou ao exílio cerca de 380 mil uruguaios, quase 14% da população na época (Clepf, 2021). Na Argentina, embora os números oficiais apontem 8631 mortos e desaparecidos entre 1976 a 1983, o número estimado é de trinta mil. Mas é extremamente relevante destacar que houve o julgamento dos generais sanguinários em 1985, sob o comando do Procurador Julio Strassera. Para a esperança de tantos chilenos, em 1998 o juiz espanhol Baltazar Garzón processa Pinochet pelos crimes de terrorismo, genocídio e torturas.

Já no Brasil a grande parte de nossas crianças e jovens ignoram que fomos vítimas de um golpe empresarial-militar que depôs um presidente legitimamente eleito, João Goulart, fechou o Congresso e impôs a censura nas artes, nos partidos, na luta por melhores condições de vida para o povo brasileiro. Alguns livros de História, sob esses quatro anos de extrema-direita de Bolsonaro, saudavam o golpe como uma “revolução redentora”, que salvou o país das garras do “comunismo”. Enalteceu-se conhecidos torturadores em rede de televisão nacional, como foi o voto do ainda deputado federal Bolsonaro, “voto pelo Coronel Carlos Brilhante Ustra, o horror de Dilma Roussef”, uma assembleia onde mais de setenta por cento dos representantes estão ali para proteger os interesses da elite brasileira, isto é, 0,6% da população.

E a História volta a se repetir no novo século XXI nas tentativas bem ou mal sucedidas de novos golpes contra presidentes progressistas: na Bolívia com o golpe que impede Evo Morales de assumir a Presidência3 e é depois levado ao poder pelo próprio povo boliviano; no Equador, com a tentativa de prisão de Rafael Correa; no Paraguai, com o impedimento de Fernando Lugo; no Brasil, com o golpe travestido de procedimento legal contra a presidente Dilma Roussef.

A palavra anistia foi intensamente ouvida ao final dos anos de chumbo. A saída da ditadura empresarial-militar no Brasil (1964-1985) deu-se após um acordo das forças civis democráticas com as armadas, com a aquiescência da parcela da elite que promoveu o golpe, como a única resposta possível à incansável luta de grande parcela do povo brasileiro insatisfeito e revoltado com o jugo dos generais, fortalecida por a little and substantial help from our progressive friends around the world4. ‘Anistia ampla, geral e irrestrita’ eram as palavras de ordem gritadas nas ruas naqueles momentos terríveis, que perduravam desde 1964 e recrudesceram com a implantação do AI-5 em dezembro de 1968 – que promoveu torturas, assassinatos, desaparecimentos - sem saber quais seriam as consequências futuras da ausência de julgamentos dos crimes cometidos, apenas queríamos que a tortura acabasse, que pudéssemos voltar a nos reunir, que a fome e o desemprego terminassem, que tivéssemos a liberdade de escolher quem nos governaria. Queríamos votar! Condescendemos.

No final de 1978, foi realizado em São Paulo o 1o. Congresso Nacional da Anistia, que foi um marco político para o movimento. Foi neste evento que se lançou a palavra de ordem “Anistia ampla, geral e irrestrita”. Ampla, porque deveria alcançar todos os punidos com base nos Atos Institucionais, geral e irrestrita porque não deveriam impor qualquer condição aos seus beneficiários e nem o exame de mérito dos atos praticados (Pereira & Marvilla, 2005, p. 106).

Lá, como agora, tudo que desejávamos era a possibilidade de escapar da ameaça existencial que pairava sobre nossos corpos, corações e mentes. Agora, 2022, pudemos nos livrar momentaneamente do fascismo pelo voto; outrora, nos submetíamos ou definharíamos, estávamos exaustos e concordamos por coação. Mas o fascismo continuou hibernando já que não houve julgamento. E o mal aguardou.

A intenção de matar ou a necropolítica em ação

As negociações que se iniciam, neste momento em que Luís Inácio Lula da Silva foi eleito, podem dar origem às tentativas de ‘deixar para trás’ todas as desgraças provocadas deliberadamente pelo governo de Jair Bolsonaro. Elas não são poucas e têm a equivalência do genocídio praticado durante a Segunda Guerra Mundial contra uma grande parcela da população civil, isto é, desarmada, indefesa, desamparada. No caso recente do Brasil, o mais gritante desses crimes foi a prática de deixar morrer durante a pandemia da Sars-cov-2, vírus que ainda permanece provocando mortes ou deixando sequelas naqueles que tiveram a Covid. Faltaram cuidados e, no caso mais pavoroso, faltou oxigênio nos hospitais de Manaus. As pessoas morreram com falta de ar e foram imitadas pelo Presidente! Quem socorreu o povo manauara foi o governo solidário da Venezuela, país execrado pelo mesmo governante.

As consequências dos dois piores anos (2020 e 2021) de pandemia no Brasil foram essencialmente nefastas. O mais importante documento vem do campo da pesquisa rigorosa das universidades públicas, através do estudo elaborado pelos professores Deisy de Freitas Lima Ventura, advogada de formação e professora titular da FSP/USP, Fernando Mussa Abujamra Aith, professor titular da FSP/USP e Rossana Rocha Reis, professora do Departamento de Ciência Política - DCP/USP, com o amparo de seus alunos e colaboradores. Conforme identificam no Relatório, o estudo fez parte do projeto de pesquisa “Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à Covid-19 no Brasil”, do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (CEPEDISA) da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, realizado em parceria com a Organização Não-Governamental Conectas Direitos Humanos até janeiro de 2021 e, desde então, com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde, com o objetivo de coletar as normas federais e estaduais relativas à Covid-19 e avaliar o seu impacto sobre os direitos humanos no Brasil.

Este estudo embasou as investigações perpetradas pelos Senadores na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da COVID. Quem acompanhou a transmissão pela TV Senado vislumbrou, com horror, a torrente de depoimentos que desnudaram práticas escusas e corrompidas. Como resultado do julgamento, ao Presidente foram imputados diversos crimes: epidemia com resultado de morte; infração de medida sanitária preventiva; charlatanismo; incitação ao crime; falsificação de documento particular; emprego irregular de verbas públicas; prevaricação; crimes contra a humanidade, nas modalidades extermínio, perseguição e outros atos desumanos; violação de direito social; incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo.

Enquanto o público aguarda o desenrolar das consequências da CPI, avesso à prática de “dar em nada”, o Procurador Geral da República, Augusto Aras, pede o arquivamento de todos os processos contra o futuro ex-presidente, seus ministros e familiares5, alegando que o que foi praticado e dito não constitui prova penal suficiente, tendo em vista que pouco se sabia sobre o vírus e que a liberdade de expressão contempla seus ditos na incerteza: “é só uma gripezinha”, “quer que eu faça o quê?”, “E daí? Não sou coveiro”, “é só tomar cloroquina”, “vão ficar de mimimi até quando?”, “a economia é mais importante que a pandemia”, “país de maricas”6.

Mas os achados da pesquisa desenvolvida no CEPEDISA demonstraram, com dados coletados no período de 03/02/20 a 28/05/21, o contrário, seus ditos remontavam a um projeto. Confirmaram “a hipótese de que estava em curso no Brasil uma estratégia de disseminação da Covid-19, promovida de forma sistemática em âmbito federal” (Ventura et alii, 2021: p. 12). Baseados em documentos oficiais e informações correspondentes a eventos (ações e omissões) que demonstraram a presença de “intencionalidade, aqui compreendida simplesmente como a confluência entre a consciência dos atos e omissões praticados, e a vontade de praticá-los” (idem).

A intencionalidade ficou escancarada nas falas proferidas na reunião do dia 22 de abril de 20207, do então Presidente com seus Ministros de Estado, cujos vídeo e desgravação foram liberados pelo Ministro do Superior Tribunal Federal (STF), Celso de Mello. Deixaram aos civilizados estarrecedoramente claros seus propósitos: “mudo a direção da Polícia Federal, mas não vou deixar prender um filho meu” (Jair Bolsonaro, Presidente), [os funcionários públicos] “já estão há dois anos sem aumento e a gente faz assim: rola na grama com ele e enfia uma granada em seu bolso” (Paulo Guedes, Ministro da Economia); “vamos aproveitar que eles estão distraídos com a pandemia e vamos passar a boiada” [para desmatar, grilar e garimpar] (Ricardo Salles, Ministro da Agricultura), “tem que prender todo mundo, a começar pelos que estão hoje no STF” (Ricardo Weintraub, Ministro da Educação), “as mulheres que são vítimas do zika vírus vão abortar, e agora vem do coronavírus? Será que vão querer liberar que todos que tiveram coronavírus poderão abortar no Brasil? Vão liberar geral? O seu ministério (dirigindo-se ao Ministro da Saúde, o desanimado Nelson Teich, recém-chegado, demissionário um mês após a posse), tá lotado de feminista que tem uma pauta única que é a liberação de aborto” [como evangélica era contra o aborto, mesmo que de uma gravidez originada por estupro] (Damares Alves, Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos).

A necropolítica foi colocada em ação, aplicada sem nenhuma misericórdia ao povo brasileiro em situação de desamparo, pressupondo “que a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer” (Mbembe, 2018, p. 5). Resta, aos que sobreviverem, a responsabilidade de clamar por justiça – e não, como afirmam alguns, por vingança. Esta última mereceria um estudo à parte. Mas, por agora, vale recordar o quanto as histórias em que uma personagem é vilipendiada, humilhada, torturada e ainda assim consegue dar a volta por cima e fazer seus algozes pagarem na mesma moeda são intensamente prezadas pelo gosto popular. Basta lembrar do êxito de público do recente filme sul-coreano Parasita, de Bong Joon-ho (2019), ganhador, entre outros prêmios, do Oscar de 2020. Mas não se espera vingança, tão humana, aguarda-se justiça.

Repetir, reproduzir

No campo da psicanálise, o estranho fenômeno da compulsão à repetição é bastante conhecido e trabalhado em sua singularidade. Mas é preciso demarcar uma diferença crucial entre reprodução e repetição, destrinchada por Lacan no Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1985). Reproduzir tem para nós, psicanalistas, a ideia do mesmo, isto é, ela não indica o novo como saída, não provoca nenhuma ruptura. A reprodução de movimentos das máquinas são um bom exemplo. Entre os humanos, muitos sabem que aquilo que se está fazendo novamente poderá levar ao abismo, mas mesmo assim o faz. Tem gente que inclusive procura deliberadamente o poço para afundar, não podendo ver um sem se atirar. Muitas vezes é a reprodução do mesmo (automaton) que conduz um sujeito a procurar uma psicanálise; ele sente-se preso em engrenagens poderosas das quais não consegue se desvencilhar, sobretudo no que diz respeito às parcerias amorosas que têm desenlaces devastadores. Ao desconfiar de quê algo está errado, o sujeito se torna um pesquisador de si mesmo, agora com o testemunho do analista, que poderá apontar o fenômeno. Não é fácil e o caminhar não se dá sem angústia, mas é um método possível que poderá mudar o caminho da satisfação pulsional. De um lado há a consciência de uma força mais forte que a vontade e ele teme; de outro, há também algo mais forte que o seduz pelo convulsionamento do ser que redundará em gozo. Medo e atração.

Já a repetição (tyché) pede a produção de algo novo que indique uma saída para não produzir o mesmo, para fazer diferente, rompendo com a cadeia reprodutiva. Repetir é pedir de novo, vem do latim repetere, fazer de novo ou atacar outra vez, com o radical re - de novo, outra vez - e petere - ir em direção a, procurar, atacar. Há, quase sempre, a esperança de que na próxima vez façamos de outra maneira. A história de cada sujeito o forçará a repetir todas as vezes em que se vir diante do mesmo. Os caminhos abertos pela pulsão são imperiosos e econômicos. Como uma picada aberta na floresta virgem, tende-se a ir pelo caminho já desbravado e conhecido. É bem mais difícil abrir outro caminho, romper com o conforto do costume, do habitual. A ruptura só pode ser feita após exame minucioso do novo terreno a adentrar. Dá medo, as incertezas são inúmeras. Mas não o fazer significa voltar a reproduzir o mesmo, ficar preso numa cadeia de mesmice labiríntica, sem achar saída alguma – e é essa tortuosidade que a psicanálise desvela e que pode levar qualquer sujeito que nela adentre a romper seus grilhões de gozo. Mas é bom recordar que na base de tudo está um acontecimento traumático.

Freud propõe dois momentos do trauma: o do acontecimento trágico original que evoca a necessidade do recalque em um sujeito desamparado e um segundo acontecimento que desrecalca o primeiro e que, aí sim, leva o sujeito a necessitar da formação de sintoma que o permita continuar a vida, agora como farsa. É só depois que o primeiro acontecimento é compreendido.

É possível que a história de cada nação se faça por princípios semelhantes: primeiro como tragédia, depois como farsa, isto é, um simulacro do que ocorreu antes, fato que não diminui o seu efeito de tragédia, sempre traumática, sobre as populações, e demandando a formação sintomática (o bolsonarismo, por exemplo).

Um dos efeitos de um acontecimento traumático sobre uma criança, isto é, alguém numa situação de desamparo, é a paralisação, a estagnação, o aprisionamento da lembrança do acontecimento traumático. Freud e seus contemporâneos trataram desses efeitos sobre àqueles que retornavam da Primeira Guerra Mundial. Era 1918. Os chamados neuróticos de guerra apresentavam sintomas que os dificultavam seguir com a vida: tremores incontroláveis, cegueira histérica, paralisia, terror noturno com pesadelos que os impedia o descanso do sono, pânico para retornar à ‘vida normal’. Não é diferente entre aqueles que passaram por outras guerras: da Segunda Guerra Mundial às que se seguiram pelo Século XX, das Coreias ao Vietnam, do Irã ao Afeganistão. Os julgamentos de Nuremberg escutaram as vítimas, seus carrascos foram julgados, responsabilizados e condenados para que os campos de concentração8 jamais se repetissem.

Anistiar para reproduzir?

A palavra anistia vem do latim, amnestia, e do grego ἀμνηστία, em ambas significando esquecimento. Em português anistia tem como sinônimos perdoar, esquecer, indultar. De acordo com os autores de Ditaduras não são eternas (2005), amnistia, é um conceito de origem grega, que diz respeito ao recurso instituído na democracia ateniense por Sólon (c 594 a.C.) que concedia clemência e perdão aos cidadãos perseguidos pelos regimes tirânicos anteriores, reintegrando seus direitos, exceto àqueles condenados por traição ou homicídio (Pereira & Marvilla, 2005, p. 101). No Brasil, as ocasiões em que houve o uso da ferramenta jurídica da anistia foram inúmeras: de 1654, com a invasão dos holandeses em Pernambuco, iniciativa do Rei de Portugal, a 1961 com o Decreto Lei que anistiava todos que participaram tanto da campanha “O petróleo é nosso”, como também os insurretos de Jacareacanga e Aragarças (Idem, p. 102-103).

Foi o presidente General João Baptista Figueiredo, nos estertores da Ditadura Civil-Militar, quem assinou e promulgou a Lei da Anistia no Brasil. A Lei de número 6.683, de 28 de agosto de 1979, perdoa os crimes políticos praticados entre 2 de setembro de 1961 até a data da assinatura da lei, a todos que

(...) cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da administração direta e indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e representantes sindicais punidos com fundamento em atos institucionais e complementares e outros diplomas legais.

Vemos no texto sentidos embutidos ou o que seriam os crimes conexos com os crimes políticos? Os das Forças Armadas? Marinha, Exército, Aeronáutica, Polícias Militares? Polícias Civis? Além dessas ressalvas, o parágrafo segundo, coloca como estando fora do benefício da anistia os que foram condenados (o que supõe ter havido um julgamento) “pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”.

A conquista da anistia e o consequente retorno dos exilados logo aliviaram as tensões e possibilitaram a retomada dos esforços e empreendimentos em prol da redemocratização e reconstrução da cidadania, mesmo contando com dificuldades e armadilhas casuísticas, tal como ocorreu nos processos eleitorais gerais e também em relação ao movimento das diretas já (Pereira & Marvilla, 2005, p. 110).

Respirando aliviados com o retorno dos exilados e o relaxamento dos que aqui ficaram na clandestinidade, uma parte da sociedade evitou remexer no solo que originou o horror. Os militares manufaturaram o consentimento para que não houvesse julgamento. Contudo, ali ficaram as sementes que vingariam anos depois como o fascismo de nossos dias.

Em termos psíquicos, os três termos referentes às qualidades esperadas na proposta da anistia de 1978 – ampla, geral e irrestrita - são incabíveis. Quando isso é feito, quando se tenta apagar imagens e emoções provocadas por uma situação traumática – o que é impossível – seus traços voltam com mais força adiante em forma de sintomas.

Não há paz psíquica possível quando a origem do trauma não é destilada, isto é, analisada, depurada, julgada. Nossas almas julgam moralmente o lugar que ocupávamos durante o acontecimento que originou o trauma: seja este acontecimento de origem natural – uma enchente, um terremoto – ou provocado por um outro – um estupro, um espancamento, uma humilhação, um assassinato. Fomos coniventes? Fomos vítimas? Claro que quando se trata de um acontecimento natural como um terremoto só nos cabe o lugar de vítimas. Não podemos, por exemplo, impedir que as placas tectônicas se acomodem. Mas a ciência da geologia já consegue, estudando seus movimentos, avisar antes o que vem pela frente, incluindo os tsunamis que se seguem quando um terremoto ocorre em regiões oceânicas. É verdade que a destruição de leitos de rios pelo homem tem provocado mortes evitáveis, o que não aconteceria se estes mesmos humanos preservassem a natureza.

Os efeitos da anistia podem ter vindo para a classe média e as elites, mas não para os povos das favelas, nem para os povos ribeirinhos, quilombolas, povos originários, nem para as mulheres, e muito menos para as crianças. Democracia é algo desconhecido para os mais pobres. As invasões praticadas pelas polícias nas favelas, seguidas de dezenas de mortes - de jovens, crianças e até mulheres grávidas - comprovam todos os dias o estado de guerra em que vivem (a já existente intervenção militar conclamada pela extrema-direita do Brasil), o desrespeito à privacidade, a humilhação e demonstração desalmada de que a “carne mais barata do mercado é a carne negra” e pobre. Os povos originários, povos das florestas, são também alvos constantes e ininterruptos de ataques.

Pensamos, logo existimos? Somos vítimas ou agentes na provocação da dor que ora sentimos? Alguém pediu perdão? Conversou conosco, explicou porque fazem o que fazem? Como walking deads, zumbis verdes e amarelos, a parte mais humilde e iletrada, seguidos de parcela da classe média, apenas reproduzem palavras de ordem. Seguem-se os financiadores: agromercadores, pastores mercantilistas e fabricantes de armas, representados no Congresso nacional pela sigla BBB – boi, bíblia e bala. Como conciliar com quem nos quer matar?

Esquecimento e memória e os perigos do desmentido

Esquecemos para dar lugar a novas experiências. Depois de esvaziadas do excesso de afeto, as lembranças são arquivadas como casos resolvidos. As situações que geram intensas emoções acabam por ocupar nossos pensamentos, impedindo a vivência do novo. Isto está na pena de Freud desde O projeto para uma psicologia científica, escrito em 1895, mas apenas publicado em 1950, em que admite que a “memória de uma experiência (isto é, a força persistente atuante) depende de um fator que se pode qualificar como a magnitude da impressão e, também, da frequência com que a mesma impressão se repete” (Freud, 1895[1950]/1976a, V.1, p. 401).

A primeira experiência de satisfação não pode ser lembrada, mas ela é forte o suficiente para levar ao esforço de buscar que ela se repita e todo encontro com um objeto é na verdade um desencontro, pois é o encontro com o impossível de satisfazer plenamente, sendo, contudo, forte o suficiente para levar o sujeito ao trabalho de continuar a procurar esse encontro suposto. Seria a primeira respiração? Fica na memória esquecida, encoberta por uma imensa quantidade de experiências, envoltas na amnésia infantil, isto é, dos primeiros anos de vida, na época da primazia do infans, onde não haviam significados para o que era visto e ouvido (significantes).

A magnitude da impressão de um acontecimento traumático, que gerou a invasão de desprazer e sofrimento no aparelho psíquico, não seria, por suposto, levado a se reproduzir. Quem, em sã consciência, procura deliberadamente a dor? Apaga-se a lembrança ou a ideia do quê aconteceu, mas a carga afetiva despertada precisa encontrar uma via por onde desaguar e isso se dará através do uso do corpo: choros convulsivos sem saber o motivo, gargalhadas inesperadas, ataques surpreendentes de fúria, rejeição da realidade e até torpor. Mas como assinalei antes, há uma tendência no aparelho psíquico a ser econômico, gastar menos energia: é a pulsão de morte, a quem o princípio de prazer parece servir (Freud, 1920/1976b, p. 85).

Desde a promulgação da Lei da Anistia, nos subterrâneos das academias militares, das escolas de ensino inicial, no ensino médio, nas universidades, nos jornais impressos, nos programas televisivos, nas rádios, alguns responsáveis pela transmissão da história do nosso país, vêm tentando apagar os anos de chumbo. E a história passa a ser contada como uma ficção rosácea de um povo cordial, quando o fundamental é contar “a história que a história não conta, o avesso do mesmo lugar”9. Impera a negação ou o desmentido.

A negação (Verneinung) é um mecanismo inconsciente que tenta retirar da consciência aquilo que, por uma fração de segundo, foi reconhecido como a verdade do sujeito. Um exemplo seria a fala de um suposto paciente de Freud sobre seu sonho: “sonhei com um homem de barba, que fumava um charuto, mas não era o senhor não”. O que levaria o psicanalista a concluir: “então ele sonhou comigo”. O material que chegou à consciência é derivado direto daquilo que tinha sido anteriormente recalcado. Tendo o mecanismo inconsciente do recalque (Verdrängung) afrouxado, permitiu que a ideia viesse à tona. Mas o juízo de valor o rechaça, e o faz através da negativa:

Assim, o conteúdo de uma imagem ou ideia recalcada pode abrir caminho até a consciência, com a condição de que seja negado. A negação constitui um modo de tomar conhecimento do que está recalcado; com efeito, já é uma suspensão do recalque, embora não, naturalmente, uma aceitação do que está recalcado. Podemos ver como, aqui, a função intelectual está separada do processo afetivo (Freud, 1925/1976c, p. 295-296).

A unidade básica da pulsão (força constante exigindo satisfação), para Freud, coaduna os representantes ideativo (palavras) e afetivo (energia). Quando a ideia está separada do afeto, no caso de algumas neuroses, temos o recalque da ideia que causa desprazer ou excesso de gozo, e o desvio para o corpo do afeto, já que este não pode ser recalcado, precisa encontrar uma via de escape imediata, que é o caso na histeria. O recalque (Verdrängung) protege o Eu de ter que se haver com a lembrança do acontecimento traumático para que a vida possa prosseguir sem um empecilho maior; assim, novas experiências podem ser apreendidas.

Freud sabe que no inconsciente o não inexiste. Ideias contraditórias e paradoxais podem conviver em harmonia sem causar nenhum espanto. Este último vem no despertar, por exemplo, de um sonho, quando a consciência inicia o trabalho da crítica: “a Torre Eiffel estava no final da Avenida Rio Branco, por cima do Palácio Monroe! Duas impossibilidades!”10 Eis que são necessárias outras formas de negar, filtrando o que pode ou não chegar à consciência e para isso vários mecanismos são utilizados: desde o recalque originário (Urverdrangung), que inaugura o aparelho psíquico ou anímico determinando o que pode fazer parte do registro mnêmico numa afirmação (Bejahung) ou o que deve ser expulso (Ausstoßung); o recalque secundário (Verdrängung) predominantemente usado no caso das neuroses; o desmentido (Verleugnung), predominantemente usado no caso das perversões; a foraclusão (Verwerfung), predominantemente usado no caso das psicoses. São todas formas alternativas do negativo - de negar conservando (Aufhebung) como na conceituação hegeliana -, sempre visando proteger o aparato anímico do excesso de angústia. Nos sonhos, outra fonte para desvelar as formas do negativo operar, temos as figuras do deslocamento (metonímia), da condensação (metáfora), da figurabilidade e da censura que incide sobre o conteúdo latente e nos impede de lembrar. A infância remota é esquecida, recoberta pelo que Freud denominou de amnésia infantil. Com isso podemos entender que não é possível para nenhum sujeito evitar a vivência traumática, cabendo ao acaso provocado pelos acontecimentos da vida a escolha por um ou vários dos mecanismos de defesa inconscientes do Eu.

Comumente o processo de pensamento obedece à função intelectual do juízo. Atribuir ou negar envolve dois juízos: o de valor (‘isso é bom ou mau?’) e o de existência (‘isso existe ou não?’). ‘Isso está dentro ou fora de mim?’ O Eu inicial, puro eu-prazer, considera que o que é bom está dentro dele, o que é mau é colocado fora dele, através do mecanismo da projeção (Projektion). Já o eu-realidade, em um segundo tempo lógico, e não cronológico, precisa constatar se uma representação que existe internamente encontra correlato na realidade externa, isto é, se tem existência ou não. Assim, “o que é irreal, meramente uma representação e subjetivo, é apenas interno; o que é real está também lá fora”. (Freud, 1925/1976c, p. 298). O importante é que a representação interna coincida com a existência do objeto fora dele, para que dele possa usufruir sempre que necessitar.

Consideremos que o inconsciente, o freudiano, inexistia conceitualmente antes de Freud: o inconsciente dos sonhos, dos chistes, dos atos falhos, dos esquecimentos. “O inconsciente é a parte do discurso concreto, como transindividual, que falta à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente”, escrevia Lacan em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1998, p. 260). Contudo, o ‘discurso concreto’ é também incompleto [ S(A/) ] e muitas vezes temos que nos haver com o não dito, até que alguém venha e nos empreste palavras para domar as nebulosas do pensamento. Freud fez isso, Marx também: desenvolveram metarrelatos que explicam o mundo singular e o coletivo até os nossos dias. Suas construções teóricas baseadas na práxis se mostraram consistentes, rigorosas e atuais, ao contrário da queda que muitos defendiam numa suposta era da pós-modernidade, espécie de filosofia a sustentar o neoliberalismo. Adiante Lacan acrescenta que “os acontecimentos se engendram numa historicização primária, ou seja, a história já se faz no palco em que será encenada depois de escrita, no foro íntimo e no foro externo” (idem, p. 262). A história de cada um está intrinsicamente ligada com a História: a escravidão de negros e povos originários, a submissão de mulheres, a exploração de riquezas naturais, a destruição de florestas, a contaminação dos mares, a extinção deliberada dos seres vivos da vida selvagem. É o inconsciente transindividual, formado a partir de incontáveis Eus, que age e possibilita a repetição de escravidões, submissões, explorações, desgraças, assassinatos, até que o que não foi esquecido, e que por isso é repetido, seja analisado.

“Não, não posso parar; se paro, eu penso; se penso, eu choro11”, cantavam em 1965, no primeiro ano da ditadura empresarial-militar. Analisar demanda tempo, a visita ao que ficou restringido pode levar às lágrimas, mas não há outro caminho para se julgar o pensamento e estancar a reprodução do mesmo. É preciso parar, pensar, julgar, criar para seguir em frente de outra maneira. Em nossos tempos, em que imperam notícias mentirosas numa velocidade que impede o processo de julgamento, passa-se rapidamente à (re)ação de forma automática sem passar pelo processo de juízo. “Julgar é uma continuação, por toda a extensão das linhas de conveniência, do processo original através do qual o Eu integra coisas a si ou as expele de si, de acordo com o princípio de prazer”, afirma Freud (1925/1976c, p. 299).

Embora o princípio de prazer esteja também e sobretudo ao serviço da pulsão de morte, ele não está em sua totalidade, uma parte busca apoio no mundo externo, no Outro. Ferenczi, amigo e discípulo de Freud, propôs o conceito de desmentido, traduzido também como negação, para destacar o caráter patogênico da situação traumática quando o outro tenta passar pano no que aconteceu, pois, o “pior é realmente a negação, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento” (Ferenczi, 1931/2011, p. 91). Quando o Outro nega o sofrimento relatado pela a criança, vem o segundo tempo do trauma, que resulta na cisão do eu da criança. “Em outras palavras, depois da intensidade insuportável do vivido ocorre a desqualificação da experiência. É isso o que resulta em uma identificação com o agressor” (Fávero & Rudge, 2009, p. 172). Isto ocorre no nível do foro íntimo, como também no foro externo, no coletivo.

Uma crítica que se faz necessária à proposta de Ferenczi é o apagamento da importância freudiana dada à fantasia, que fez com que Freud deslocasse a discussão gerada sobre se o acontecimento traumático foi real ou não, para a importância e legitimidade da realidade psíquica, sem colocar em dúvida o dito do sujeito.

No caso dos acontecimentos trágicos da Ditadura empresarial-militar no Brasil e do recém vivido sob o Governo que se encerra não há dúvidas, mas documentos e testemunhos que corroboram certezas das desgraças causadas intencionalmente, em ambos os casos. Como o primeiro não foi julgado e sim recoberto pela anistia, ele se reproduziu agora, com militares e civis no poder. Desta vez será preciso julgar.

Ruptura e criação

Sabemos que muitos criminosos do exército nazista alemão e seus apoiadores foram julgados e condenados em Nuremberg, mas muitos mais escaparam para outros países, sendo cooptados pelos serviços secretos dos aliados para combater o ‘comunismo’: para serviços de espionagem (Otto Skorzeny, Office of Strategic Services, OSS, precursora da CIA, Escritório de Serviços Estratégicos, criado pelos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, e Mossad - pasmem! - o Serviço Secreto de Israel), para pesquisas que deram origem às poderosas bombas atômicas (Heinz Krug, colega de Werhner Von Braun, pelo Egito12), ou simplesmente levando vida comum, a mesma que impediram milhões de pessoas viver (Adolf Eichmann, na Argentina; Klaus Barbie, na Bolívia; Josef Mengele, Argentina, Paraguai e Brasil). Não queremos que o mesmo volte a ocorrer no Brasil, e nem desejamos exportar o mal que nos castigou nos últimos anos para outros países.

Contudo, não é possível ‘anistiar’ um acontecimento traumático. Há atos imperdoáveis de crimes imprescritíveis: o assassinato de pessoas indefesas é um deles. E isso este último governo federal desastroso e criminoso cometeu aos milhares, incluindo aqui os governos do Estado do Rio de Janeiro13, que veem reproduzindo, sem nenhum pudor, com suas incursões nas comunidades os horrores das torturas e execuções da ditadura na população predominantemente preta e pobre, sempre alegando confronto entre policiais e traficantes. Para eles a democracia nunca chegou!

Será possível que o mecanismo da anistia seja utilizado, de novo, sem julgamento, em nome de uma conciliação onde sempre quem ganha são os ricos e poderosos contra a maioria do povo brasileiro? Adiantamos que, caso ocorra, o preço a ser pago pela subjetividade brasileira será sua falência: as destruições da frágil democracia, da liberdade coletiva, dos laços sociais causarão prejuízos incomensuráveis na alma de cada um de nós, mesmo daqueles que apoiaram por ignorância esse circo de horrores!

Só podemos esquecer quando os crimes forem julgados, condição para passar à memória como algo que jamais poderá ser reproduzido. Não esqueceremos suas intenções de matar, destruir o meio ambiente, prender arbitrariamente, sufocar a inteligência, impor valores retrógrados, implodir a democracia. E, acima de tudo, não esqueceremos a negligência em aplicar, durante a pandemia, medidas de saúde amplas, gerais e irrestritas.

Não queremos vingança, mas ruptura com a reprodução condescendente do mesmo há cinco séculos no Brasil. Tomando as palavras de Hans Mommsen sobre o Terceiro Reich na memória dos alemães, para que possamos nos apropriar dessa fração recém vivida da nossa história, será preciso fazer essas contas e isso é doloroso: “Esse é um processo de longo alento, sendo em seu fim, não em seu começo, que pode nascer o esquecimento” (2017, p. 80). Que se promova o julgamento e a responsabilização dos crimes para que nunca mais aconteçam. Embora como psicanalistas saibamos que ‘nunca mais’ seja uma impossibilidade na experiência humana, haverá eventualmente alguém para quem as leis criadas servirão para colocar freios à livre vazão da satisfação pulsional de atos práticas.

Post scriptum

Escreve Eliane Brum que “o grande desafio do jornalismo é escrever sobre a história em movimento” (2019, p. 7). Entre jornalistas e psicanalistas há diferenças de objeto: um, busca a verdade nos fatos; outro, vasculha o inconsciente em busca da verdade de cada sujeito. Os psicanalistas envolvem-se com a história viva de cada sujeito, influenciada por acontecimentos passados que determinam a forma de ser de cada um. Os jornalistas escrevem enquanto “os fatos estão se desenrolando”.

Escrevi este artigo reflexivo em novembro de 2022, logo após o resultado do segundo turno das eleições. No dia primeiro de janeiro de 2023 o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumiu seu terceiro mandato como dirigente da República Federativa do Brasil. Bolsonaro estava em Miami desde o dia 30 de dezembro. A faixa presidencial, que deveria ter sido transferida pelo ex-presidente na repetição de um ritual da República, foi-lhe transferida por representantes do povo brasileiro e a cadelinha Resistência, resgatada do Acampamento Lula Livre14.

No dia oito de janeiro de 2023, uma horda de manifestantes pró-Bolsonaro, insatisfeitos com o resultado das eleições, impulsionados pelo comportamento negacionista e antidemocrático do ex-presidente, invadiu os prédios dos Três Poderes da União - Legislativo, Executivo e Judiciário: o Congresso (Câmara e Senado), o Palácio do Planalto e o do Superior Tribunal Federal. O prejuízo ultrapassa os trinta milhões de reais (em torno de seis milhões de dólares) entre objetos, mobiliários e obras de arte. Há, contudo, um prejuízo incalculável nas subjetividades brasileiras.

Seguimos acompanhando agora o julgamento dos mais de 1000 presos no dia e nos imediatamente seguintes, acampados diante de quarteis do Exército, como também as prisões dos mandantes que financiaram viagens alimentação e manutenção dos acampamentos. Há movimentos que propõem anistia para os criminosos que destruíram vidas (minimizando os efeitos da pandemia) e sonhos (limitando o acesso às universidades, destruindo o ambiente artístico). O período bolsonarista impingiu uma dose a mais de angústia e agonia à maioria do povo brasileiro, todos os dias, durante quatro anos.

Gostaríamos de barrar a repetição aqui e agora. Com apurações justas, como o povo da Argentina fez em 1985 com os sádicos da Junta Militar (Mitre, 2022). Para alívio de uma grande parcela de brasileiros democratas e progressistas, o papel do STF tem sido crucial. Foi decisivo durante as eleições de 2022 e está sendo agora, outubro de 2023, quando há o julgamento daqueles que atentaram contra a democracia. Nesse sentido, o Ministro Alexandre de Moraes talvez esteja tendo um papel tão fundamental como foi o de Strassera na Argentina, ao não deixar o crime oculto e soterrado, mas trazê-los à luz, julgar, condenar e atribuir uma sentença proporcional à gravidade dos crimes cometidos contra a democracia.

Agora respiramos porque os primeiros julgamentos estão vindo. Sem anistia, para que possamos lembrar e não repetir. Ficará em nossas memórias, para nunca esquecer e seguir na resistência a qualquer fascismo, recuperando um pouco da nossa saúde mental nesse mundo devastado pelo capitalismo desenfreado.

Referências bibliográficas

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1 Professora Titular do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professora do Programa de Mestrado Profissional em Psicanálise e Políticas Públicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Professora do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Mestrado e Doutorado, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutorado em Teoria Psicanalítica pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-doutorado pelo Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Rua Santa Clara, 266/apto. 801. Copacabana, RJ, Brasil. CEP: 22041-012. Correio eletrônico: rita.barros@unirio.br / ritamanso2008@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7603-8062

2 Letra da música Minha Alma (A paz que eu não quero) do grupo O Rappa. Warner Music.

3 Alegava-se que era demais Evo Morales ficar por tantos anos no poder, que a democracia exige alternância. Mas nenhum país rico se incomodou com o fato de Angela Merkel (2005-2021), chanceler da Alemanha, ter ficado dezesseis anos no poder!

4 Referência à música With a little help for my friends de Lennon e McCartney, no álbum Sgt. Peppers, só para lembrar dos Beatles, porque mesmo na desgraça da ditadura, cantávamos e dançávamos. Com Chico Buarque, Milton Nascimento, Elis Regina, Belchior, Gonzaguinha, Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Erasmo Carlos, Jorge Ben e tantos outros artistas que nos ofereciam força com suas artes para suportar o tranco.

8 Infelizmente esse modelo se espalhou pelo mundo capitalista: Guantánamo, prisão em território estadunidense subtraído de Cuba, é um exemplo.

9 Letra do samba-enredo História de ninar gente grande da Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira, campeã do Carnaval do Rio de Janeiro de 2019, cujos alguns dos versos cantam: “Brasil, meu nego deixa eu te contar/ A história que a história não conta/ O avesso do mesmo lugar/ Na luta é que a gente se encontra/ Brasil, meu dengo/ A Mangueira chegou/ Com versos que o livro apagou/ Desde 1500/ Tem mais invasão do que descobrimento/ Tem sangue retinto pisado/ atrás do herói emoldurado/ Mulheres, tamoios, mulatos/ Eu quero um país que não está no retrato (...)”. Pode ser encontrada completa no Google.

10 O Palácio Monroe foi a antiga sede do Senado Federal entre 1925 e 1960, quando houve a mudança para Brasília como capital do Brasil. A construção foi demolida em 1976. Fonte: Agência Senado.

11 Letra de Mundo maluco composta por David Nasser, Moacyr Franco e Nelson M. dos Santos.

14 O acampamento foi criado por militantes do Partido dos Trabalhadores e simpatizantes, ao lado do prédio da Polícia Federal, na cidade de Curitiba, onde Lula ficou preso durante 585 dias. Todos os dias as pessoas ali reunidas lhe davam bom dia, boa tarde e boa noite. Recebeu visitantes de vários lugares do mundo o mundo.